Neste primeiro de dois episódios focados nas reações químicas que alteraram o curso da nossa espécie - para melhor ou pior - exploramos as interações da matéria que definiram a história. Da cerveja aos computadores que permitem estar a ouvir um podcast “pelo ar”, convido-vos a percorrer os acasos e as descobertas que mudaram o mundo
Reação de Maillard
Já todos ouvimos dizer, contado e recontado nas aulas e programas de história natural e humana, que a grande conquista original da humanidade foi o domínio do fogo. Antes de mais, convém manter-mos em ideia que o domínio do fogo foi um processo gradual que, muito provavelmente, começou pela utilização indireta do fogo. Ainda que seja perfeitamente possível que tal fenómeno se verifique na natureza, a pesquisa realizada para este episódio não encontrou referências ao consumo de carcaças após um episódio de incêndio. Ainda que a maioria das publicações refiram que o domínio do fogo se tornou uma peça basilar da evolução humana, devido à dieta rica em proteínas e nutrientes biodisponíveis
Temos agora a nossa #PALAVRADODIA (biodisponibilidade é a característica de um nutriente de ser assimilado pelo organismo que o consome. Para a mesma quantidade de proteína animal e vegetal, a proteína animal é de mais fácil assimilação).
Mas então, temos a associação do processo físico de cozinhar algo - essencialmente promover as reações químicas que os tecidos sofrem quando expostos a altas temperaturas - para promover a biodisponibilidade de nutrientes. Contudo, os efeitos benéficos de tal fenómeno não são imediatos. Ainda que o processo do domínio do fogo tenha promovido a evolução a longo prazo, as motivações para controlar o fogo e a culinária não se tornam imediatamente aparentes.
Então, o motivo que explica essa transição para o consumo de produtos cozinhados pede explicação lógica e prática. Antes de mais, a quebra de proteínas (que de forma muito simples e para o que aqui estamos a falar, são o que dá estrutura aos tecidos), torna os alimentos mais mastigáveis, mais “moles” se assim quisermos dizer.
O segundo ponto essencial, é a nossa primeira reação. A reação de Maillard, assim descrita pelo nome do seu primeiro descritor, Louis-Camille Maillard. Alguma vez se perguntaram a razão pela qual os alimentos escurecem, ganham cor e sabor? Isso é a reação de Maillard. De forma muito simples, a partir dos 100ºC de temperatura, as proteínas e os açucares combinam-se, formando um conjunto de compostos químicos tão docemente descritos na culinária como “aromáticos”. Cada alimento produz diferentes combinações de compostos, permitindo-nos saber a delicada - mas científica - diferença entre uma casa onde se está a assar um pão e um frango.
E aí temos a mais deliciosa, e provavelmente, a primeira reação química largamente explorada pelo Ser Humano. O consumo de alimentos cozinhados, sobretudo daqueles que produzem intensas reações de Maillard, está associado à própria base de ser humano. Não é estranho que em testes que avaliam a reação de indivíduos a aromas, o cheiro de pão acabado de cozer - não poucas vezes - ganha.
O nosso trato intestinal, a nossa evolução, o próprio interesse e desejo de dominar o fogo e acender - a literal - chama que lançou a humanidade no caminho que nos trouxe aos dias de hoje começou, em mais formas do que uma, porque o fogo tem a tendência de fazer com que certas coisas saibam particularmente bem.
Fermentação
Agora que já falamos de pão, na nossa abordagem às reações de Maillard, vamos falar da reação química que tirou o “ázimo” do nome. Pão ázimo, ou não fermentado - popularmente conhecido no dia-a-dia como os pães consumidos no oriente próximo e médio. Kebab, Shoarma, pão Naan são bons exemplos, diferem do pão consumido maioritariamente na Europa devido à falta de um ingrediente muito simples: Fungos!!
Mais especificamente o conjunto de fungos que todos nós adoramos, leveduras! (Ou fermento de padeiro, para aqueles que aderiram à Pão’demia que grassa durante esta quarentena). Aquele pó, ou substancia mole que deixa a água turva quando se faz massa de pão, são leveduras, um fungo microscópico que faz algo extremamente interessante: transforma o açúcar que come num subproduto extremamente interessante: Álcool.
“Mas calma!” - pensa com razão. Álcool? No pão? Sim!! A fermentação - ou o levedar - da maioria dos pães é uma fermentação alcoólica, mas, devido ao ponto de evaporação do etanol (o tipo específico de álcool a que chamamos “álcool” - sim, a ciência tem destas coisas), todo ele evapora na cozedura e o pão pode ser consumido por crianças e grávidas.
Por outro lado a fermentação também tem uma vantagem extremamente importante, a produção de Dióxido de Carbono, gás esse que promove a expansão da massa do pão no processo de levedação, e, aquando da cozedura, expande, formando as bolsas de ar que conferem ao pão a sua estrutura granular mais ou menos densa.
Fica a pergunta - uhm, então a cerveja é fermentada? Sim! Aliás, exceptuando o lúpulo da cerveja (uma planta aromatizante) os ingredientes do pão e da cerveja são essencialmente os mesmos. Aliás, há evidências fortes que o primeiro subproduto do uso humano da fermentação foi algum tipo de cerveja primordial, obtida pela fermentação acidental de cereais expostos ao ar e à chuva. E aqui entram as teorias interessantes sobre os primórdios da humanidade e a sedentarização que permitiu o começo daquilo que agora entendemos como civilização.
Existe uma forte possibilidade de que um dos fatores que motivaram o sedentarismo humano tenha sido a produção em massa de bebidas alcoólicas. O acesso ilimitado a cereais providenciado por uma agricultura estável - e, como tal, a produção em massa de álcool - pode muito bem ter influenciado humanos antigos a estabelecerem comunidades. E a acrescentar a tal fenómeno, o facto do uso da fermentação ter começado pelas bebidas alcoólicas abriu um leque de possibilidades a todos os outros produtos fermentados que o ser humano consome: o vinho, o pão e, ainda que neste caso não sejam as leveduras mas bactérias, o queijo!
Uma das propriedades mais curiosas do processo de fermentação, e igualmente crucial para o desenvolvimento do ser humano, é o combate ao calor.
A luta contra o clima é uma que não é fácil de vencer.
Mesmo quando este não se apresenta como um fenómeno extremo, como uma tempestade ou furacão, a simples flutuação climatérica diária e anual, ou seja, as flutuações de temperatura associadas ao ciclo dia-noite e às estações do ano têm um efeito terrível nos alimentos.
Fermentam-nos. Mas de outras formas. O apodrecimento característico da exposição de produtos alimentares aos elementos prende-se, essencialmente, com algum tipo de fermentação, algum tipo de ação de microorganismos que produzem compostos nocivos ao organismo humano. Contudo, a fermentação controlada - por meio de leveduras, por exemplo - traz a vantagem específica de que é muito mais difícil, em termos muito gerais, estragar aquilo que já estragou.
Essencialmente, o decaimento controlado de produtos alimentares protege-os de outros tipos de ação microbiótica nociva. Esta conclusão, feita algures na história humana, permitiu a preservação dos alimentos perecíveis mais comuns na antiguidade. Cereais e leite.
Agora falando para aqueles que ganham créditos extra: mas então porque é que é mais difícil estragar o que já estragou, digamos assim? Boa pergunta! Acidez. tanto a fermentação alcoólica como láctea (a dos queijos e iogurtes), tem o feliz subproduto de baixar o pH, sendo o pH uma medida peculiar, pois é uma escala logarítmica de base dez da concentração total de iões de hidrogénio. Daí pH, ou potencial de hidrogénio. Afff… eu sei, eu sei. Sabem aquela dor horrível que prende os músculos cansados? É a mesma coisa. Essencialmente, muito potencial de hidrogénio faz uma solução alcalina, muito pouco, uma solução ácida.
Então, a nossa fermentação baixa o pH das soluções. E como a natureza tem uma tendência ah…“natural?” de preferir o equilíbrio, a maioria dos organismos evoluíram para proliferar em soluções quase neutras em termos de pH. Daí, quando algo já “estragou”, ou seja, se tornou modernamente ácido, torna-se um ambiente hostil ao desenvolvimento da maioria dos organismos que podem ser tóxicos para o ser Humano. Esta proteção permite contrariar o principal efeito do calor - e da humidade - a criação de um ambiente proveitoso.
Bronze
Acreditem. Essencialmente todos descendemos de uma sociedade que descobriu a fórmula do bronze. Ou então que foi conquistada por uma.
A descoberta do Bronze supriu tanto uma necessidade – ferramentas, armas – forjando instrumentos de trabalho, mas também compensou um problema fundamental: dadas as características dos metais puros relativamente abundantes e acessíveis na crosta terrestre (ouro, cobre, prata e platina), como o seu excessivo valor ou peso e falta de dureza, nenhum elemento puro se apresentava uma alternativa viável aos instrumentos – e à própria Era – da Pedra Lascada.
Antes de mais, a ideia por trás de uma liga metálica é bastante simples. No estado sólido, devido à forma fundamental como os estados de matéria se organizam, duas substâncias não se combinam. Em termos muito simples, a energia inerente às ligações que fazem dos corpos… bem… sólidos, é tão elevada que essas pontes, essas ligações, não permitem que as partes individuais da matéria se separem, e, por consequência, se misturem.
#FACTODODIA - o processo original da fabricação de vidro, consistia do arrefecer extremamente rápido de uma solução de areia aquecida ao ponto de ficar líquida - e fica líquida porque o calor extremo vence essas tais “ligações” de que falamos. Isto fazia do vidro um estado de matéria pouco discutido: o líquido super-arrefecido. Essencialmente, este estado da matéria torna-se um líquido tão espesso que praticamente não flui. Imaginem um mel tão espesso que demora anos e anos a escorrer. Se encontrarem um espelho antigo, confirmem se o fundo do espelho não está mais espesso que o topo.
Voltando ao nosso Bronze. A combinação de Cobre e Estanho, ainda que não sejam os elementos metálicos mais comuns na crusta terrestre, abriu a possibilidade da criação da primeira liga metálica da história. A possibilidade de forjar e manipular o bronze abriu a possibilidade de criar instrumentos mais duradouros, e mais eficazes, que os de pedra que substituíram. A fundição permitiu à criatividade humana exprimir-se por um processo aditivo, e não subtrativo, como lascar uma pedra até a um formato útil. A descoberta do fogo, milénios antes, permitiu a fundição destes metais - e especificamente destes. Uma forja de bronze não necessita as elevadas temperaturas que permitem fundir ferro, níquel e todos os metais que viriam a ser usados em ligas após o aparecimento dos altos-fornos.
As vantagens, contudo, são inegáveis. O avanço da agricultura com ferramentas de maior qualidade, e, sobretudo, o efeito contundente do uso de metal no fabrico de armas mudaram para sempre a complexa máquina das interações civilizacionais. Estava dado o primeiro passo da corrida ao armamento mas também, nesse equilíbrio para o qual a natureza tende, para o comércio. A parte mais interessante da história do Bronze, e das civilizações dessa “Idade”, é que os componentes do bronze - o cobre e o estanho, não ocorrem naturalmente nas mesmas zonas. Ou seja, a obtenção destes materiais primários torna-se um esforço que exige dispersão geográfica. Assim teve de nascer a primeira rota organizada de comércio.
*Carta Aberta às Civilizações da Idade do Bronze*
*Porquê desaparecer de forma tão rápida e tão misteriosa?
De todos os impérios e civilizações desta era, Assírios, Minóicos, Sumérios, Egípcios, apenas os últimos conseguiram sobreviver, ainda que com uma queda significativa, à extinção civilizacional que marca o fim da Idade do Bronze.
Como cientistas e historiadores, os factos e as evidências são importantes, e a verdade é que simplesmente há um silêncio histórico nesta período da história. Porque nos deixam a ter de descobrir estas coisas de forma autónoma?
Tudo aponta para um conjunto de fatores sócio-económicos e pressões externas, mas os méritos e deméritos dos modelos económicos e sociais não são propriamente científicos.
O que é científico, caras civilizações da Idade do Bronze, é a exaustão dos solos. Quando o mesmo solo é consistentemente plantado com o mesmo tipo de culturas, com as mesmas necessidades de nutrientes, eventualmente o solo vai ficar desprovido desses mesmos nutrientes. Sobretudo o azoto. Sem estes nutrientes que sustentam as culturas nas quais uma economia essencialmente primária assenta é impossível a manutenção a longo-prazo de uma civilização sedentária. E o pior é que vai ser gradual, não vão notar até ser tarde demais, ninguém vive tempo que chegue para conseguir associar estas questões ao longo do tempo.
Trevos! Plantem trevos, de vez em quando, por favor. Ao menos resolve o problema do Azoto!
Ah… a questão do empobrecimento dos solos e as técnicas de rotação de culturas para manter a produtividade só vai ser descoberta no século 17, na segunda revolução agrícola? Bem… ao menos já tinha acontecido a primeira. Como é que as civilizações vão sobreviver os próximos 2000 anos, é uma questão interessante…
(Vai morrer muita gente, já agora. É essa a resposta. E roubar, também, sobretudo de quem produz).*
A proeza cientifica a criação das ligas metálicas acompanha o ser humano à milénios e permitiu, para todos os efeitos, a construção do mundo no qual vivemos. Esse simples conceito, de que o calor pode juntar dois elementos e conferir-lhes propriedades que são para nós vantajosas (alguém está a notar as semelhanças com a domesticação? uhm… episódio talvez) é a base de praticamente todos os utensílios e ferramentas que evoluíram as sociedades humanas, excepto um: A escrita. para isso? Para isso precisamos de papel...
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